sábado, 13 de outubro de 2012

Tempos de Círios - Luiz Manoel Ferreira Maia

Outubro
Tempos de círios

Anjinhos cavalgam em ombros humanos. Divertem-se. Tamborilam em cabeças. Dedinhos entrelaçam rédeas de cabelos. Olhinhos vivos percorrem em derredor: superfície ondulante, chapéus, asas, cruzes, fitas, bandeiras. Curiosa miscelânea boiando sobre a multidão de cabeças e braços elevados, mãos espalmadas em saudação. Mãos que pedem bênçãos à Virgem Mãe.
Milhões de reflexos, cintilações de fragmentos metalizados e milhares de balões coloridos flutuam no horizonte azulado. Paisagem em louvor. Em festa.
Querubins observam, alguns bocejam. Cansam. Dormem pendurados em pescoços de romeiros. Retratam aspectos do Deus-Menino. Pureza, inocência. Realeza, divindade. Alegria em vidas que desabrocham.
Tentemos encadear-nos nesse tempo de vida renovada.
Novamente outubro. Vivamos neste e noutros tempos o Círio de Nazaré, tempo no qual assume a forma extraordinariamente caudal o rio de gente em que navegam os carros ornamentados que conduzem anjos, que contam milagres, que recebem promessas. Vivamos o tempo das velas e dos terços nas mãos dos romeiros, da multidão de lábios a recitar versos de amor, a soltar gritos de entusiasmo. Tempos da grande romaria que se sucede sobre veículos rodantes, em barcos com silhuetas de flâmulas tremulantes sobre as águas tintas da ocra amazônica, ou em horas de caminhada pelas ruas de Belém. Romaria de um povo que em suor e esforço se agiganta na fé, de almas que ladeiam com alegria e esperança a imagem da mãe peregrina. Vivamos o tempo em que milhares de olhos contemplam explosões multicolores nos céus. Tempo do Círio que desde o amanhecer já nos ensurdece com o pipocar de fogos de artifício, e que em sua intermitência ouvimos com emoção o badalar festivo de todos os sinos da Basilica e os acordes dos hinos das bandas militares engalanadas. Tempo de maior dedicação dos engajados no servir, das ordens clericais nas ruas a caminhar com fervor ao lado das associações embandeiradas, dos colegiais uniformizados e dos devotos de braços dados. Peregrinos que elevam as mãos suplicantes e de outros que as ocupam a carregar esculturas em cera, miniaturas de casas, barcos e objetos singulares, na mostra que cada um pretende firmar na lembrança de todos, do quanto somos agraciados em resposta aos nossos apelos a Maria.
Vivamos o tempo do Círio de Nazaré, do solo coberto de pés caboclos, índios, brancos, cafuzos, negros. Pés que se esticam nas pontas e fazem a vista procurar, acima dos ombros e cabeças à frente, qualquer sinal de aproximação da berlinda ornamentada com flores, que agasalha a imagem de Maria, da mãe querida de todos. Da mãe que em seu passeio mostra a todos o Menino-Deus em seus braços, seu amado filho e nosso irmão. Mãe e Filho em simbolismo do amor universal, que atraem para si nossa atenção, nossos corpos em alerta e nossas almas em devoção.
Senhora de Nazaré, mãe que acolhe as nossas súplicas de remissão das nossas culpas, que atende aos pedidos de libertação das almas prisioneiras às correntes do egoísmo, dos cárceres do ódio e das teias da ambição da posse de tesouros que as traças corroem e que o tempo desfaz.
Vivamos o Círio a acompanhar Maria e o Menino nos círios de todos os tempos.
Vivamos o tempo do Círio de Nazaré. Da corda dos pagadores de promessas. Da corda que em tempos distantes se fez útil no desatolar do carro da berlinda. De útil tornou-se precaução, depois, tradição.
Nos tempos passados ficou o atoleiro. Hoje a corda arrasta consigo a incalculável gratidão. Transformada em símbolo de fé pelos detentores do galardão que para si rogaram auxílio e proteção. Nos Círios de hoje, a corda em sacrifício verte lágrimas de alegria pelas graças alcançadas; ela range, grita, canta, recita. Reza, soluça e tartamudeia. Aqui e ali solta urros de vitória. Como um animal que ruge em alívio ao livrar-se da armadilha. Pronuncia sons indefinidos, outros imperceptíveis. Nada reclama. Supera o cansaço, a secura da garganta e o sofrer nas carnes doloridas. Assim segue a corda, inacreditável para quem a vê a passar, inimaginável para quem nunca a viu tão perto, grandiosa e mística em seus incontáveis fios de milagres anônimos. Milagres tantos, de cada um que traz em si a história do livramento de uma agonia.
Com nossa Mãe vivamos solidários aos agradecidos, em tempos de fraternidade, de romarias, de festas, de felizes reencontros... Vivamos o tempo desde a preparação, nas visitas em peregrinação, na trasladação da imagem da Virgem Santíssima, na véspera do domingo e nos dias seguintes de cada outubro. Vivamos o tempo do Círio no calor amazônico amenizado pelas sombras das frondosas mangueiras, pelos ventos que sopram sobre as barrentas águas da Baía de Guajará e adentram nesta terra abençoada.
Vivamos mais uma vez o círio anunciado pelos indomados periquitos, que em bandos pelos céus de Belém serpenteiam em desenhos estridentes, proclamando a vida uma eterna criança.
Vivamos e lembremos os tempos que passaram, trilhados em comunhão pela estrada de Nazaré, no sacrifício envolvido na fé, nas marcas dos nossos pés no caminho em que abandonamos nossas incertezas, nossos rancores, nossas mágoas, nossos desentendimentos... Todos esses pesados fardos que conseguimos desatar de nossos ombros a cada romaria, em que tivemos sobre nós o olhar misericordioso de nossa divina mãe.
Graças, Maria, à tua magnitude, à tua intercessão por teus filhos em tempo imorredouro. Graças pelos teus rogos em eras passadas e pelos anos que virão a suceder-se em novos tempos, em novos Círios, em que percorreremos felizes ao sentir tua presença constante entre nós. Tua companhia que nos enche de ânimo, da alegria de nos sentirmos filhos da Excelsa Mãe.
Vivamos como filhos que somos de Maria, a conosco peregrina, que traz aos nossos corações a certeza da superação das adversidades, que nos leva a um caminho de luz e nos renova a esperança de que a cada passo conquistaremos uma vida de amor e paz.
Não sabemos quanto tempo há de passar, tempo de vida humana, para que os filhos que virão sigam os mesmos caminhos e cada um venha a comprazer-se no amor fraternal e na alegria da festa do Círio de Nazaré, em que repetimos em júbilo a saudação angélica, Ave Maria, cheia de graça, porque assim foste A Escolhida. O Senhor está contigo, bendita sois entre as mulheres, pois que em teu ventre deste abrigo ao Príncipe da Paz.
Maria, que conduziste o caboclo Plácido ao teu lugar em Nazaré. Que trouxeste a muitos o significado desse encontro: Contigo Jesus e sua mensagem de amor e paz para esta região tão brasileira, tão bela de águas e florestas. Chamas ao teu encontro teus filhos em todos os recantos e de todas as ilhas cercadas de rios e igarapés. Acorrem ao teu chamado – a pé, em carros, a remo ou à vela – à tua festa matinal, na grandiosa procissão que percorre os verdes túneis de Belém do Pará, entre cânticos, orações e agradecimentos.
No teu Círio que segue seu curso na felicidade das graças alcançadas e no cumprimento de promessas. Em jornada de libertação das almas, entre pedidos e desejos de conversão. Que se move na força da fé e do amor sublimado em pureza e devoção.
Vivamos tempos de Círios, da festa de todos os que te acompanham e se tornam irmãos, se aparentam e se veem em família pela tua maternal presença. Em que afloram com mais vivacidade as emoções dos olhares e abraços afetuosos, das mãos que se afagam e trocam energias benfazejas.
Vivamos o Círio de Nazaré na tradição, na alegria das reuniões, das mesas com iguarias paraenses. Nas apresentações, no reencontro de parentes e amigos. Na alegria dos jovens no parque e da criançada com os brinquedos de miriti. Tempo em que os velhos remoçam nos brindes e no testemunho de mais um Círio, na lembrança daqueles de outrora e na certeza de que outros virão cada vez mais belos.
Vivamos mais um Círio de Nazaré em paz e na simplicidade das almas que se reconhecem humildes diante das grandezas divinas e dos mistérios insondáveis que regem o universo.
Vivamos o Círio, no êxtase da contemplação da imagem de Nossa Senhora, mãe intercessora em todos os tempos.

Do livro de crônicas “Tempos de Círios e Outros Tempos”, autoria de Luiz Manoel Ferreira Maia, com os editores para publicação em breve;

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